Foi depois de ter assistido a “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” que percebi como o aborto é romantizado na nossa sociedade. Falamos a respeito dessa prática numa abstração curiosa, muitas vezes sem nos darmos conta das Inconveniências envolvidas no processo. Claro, sabemos da precariedade existente nos “consultórios” ilegais e de seus riscos inerentes, mas sabemos apenas, ouvimos falar, discutimos, lemos no jornal. O tema parece estar no mesmo grupo onde estão a “fome na África” ou a “guerra no Oriente Médio”. Ou seja, faz parte do dia-a-dia, é corriqueiro, mas ao mesmo tempo situa-se tão longe da nossa realidade.
O filme, direto e cruel, deixa a conversa de lado e mostra minuciosamente as etapas de um aborto. Abre parênteses: a estética logo de cara evocou na minha cabeça “A Criança”, dos Dardennes, também vencedor da Palma de Ouro. Ambos poderiam entrar na categoria Filmes Realistas E Com Câmera Tremida Envolvendo Dois Personagens Lidando Com Um Bebê Ou Tentando Se Livrar Dele. Pois então, voltando. Há cenas explícitas e, obviamente, impactantes.
Nenhuma cena se compara, no entanto, àquela que não vou mencionar, mas que você sabe qual é, pois estamos falando de um aborto. Na cadeira do cinema, pensei: “Espero que a câmera não mostre isso”. Pois ela não só mostra, como se fixa ali durante vários segundos, evocando um misto de repugnância, desespero e tristeza.
Em geral, as pessoas que viram o filme comigo não gostaram dele tanto assim, alguns o consideraram “sensacionalista”. Mas ele não choca por chocar. O “exagero” força uma reflexão. É quando se desmistifica o aborto, encarando obscenamente, em longos planos, o tosco quartinho de hotel, os bisturis, a sonda alcançando o útero, a dor, a febre e o sangue, que você é capaz de considerar o assunto como algo real, e não como tema de redação de vestibular. A partir disso, ele talvez possa ser analisado sob um novo olhar.
Veja meu caso: sou a favor do aborto, mas num certo momento confesso ter dado um passo para trás; algo mexeu aqui dentro. Se o filme é contra? Não, ele não se rende a maniqueísmos ou moralismos, até porque também confronta o outro lado e freqüentemente pergunta: “Você é contra, mas e se fosse com você?” – além disso, torce-se pela protagonista como se ela fosse uma heroína, o que é um paradoxo para o espectador mais conservador, já que, ao ajudar uma amiga a retirar o feto, ela teoricamente é cúmplice de um assassinato.
O filme ainda é mestre no manuseio dos recursos técnicos para provocar tensão constante, vide a cena noturna que se passa na rua. De uma forma bem estranha, cheguei a lembrar de “Operação França”. Deixando de lado discursos políticos panfletários, o foco das atenções está nas torrentes de emoção de uma mulher caindo, sucessivamente, no imprevisível e tendo de lidar com os problemas da forma mais discreta possível. A cena mais representativa disso é aquela do jantar de aniversário. Simples, sem cortes e durando cerca de dez minutos (ou mais), seu peso dramático tem efeito muito maior do que os planos-seqüência grandiloqüentes que estão na moda em Hollywood.